quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Dica literária: A Carne (Júlio Ribeiro)

A obra ambienta-se no Brasil, na época do império e da escravidão, aborda a sociedade brasileira e seus costumes em relação à educação das moças e ao casamento. Utiliza-se de conhecimentos científicos adquiridos pelas personagens para tomar ritmo em certos pontos e, apesar de tratar-se de um romance, foge muito à linguagem poética esperada deste tipo de obra. Lenita não idealiza o amor da mesma forma que outras moças da sua idade o fariam, pelo contrário, evita-o, não tem o desejo de casar-se e quando sente pela primeira vez a vontade de ter um homem junto a si, descreve quase com frieza as razões – sabe que caso se case terá filhos que dependerão dela, em outro ponto fica muito claro ao leitor que a moça sabe que se trata de uma questão biológica, a fêmea procurando por seu macho. Mesmo em sua momentânea decepção ao conhecer Barbosa, homem que ela tanto vinha imaginando e desejando conhecer, não há grandes rompantes de emoção. Em relação a Barbosa o mesmo se passa durante a narrativa: Divorciado da primeira mulher apaixona-se por Lenita concluindo que “não consegue estar longe da rapariga”, mas também por parte dele não há durante toda a narrativa grandes arroubos sentimentais. É quase uma narrativa lógica, linear, onde os próprios personagens, instruídos que são, ocupam-se em explicar o próprio estado de espírito. As personagens principais são Lenita e Barbosa, as outras personagens servem de apoio à narrativa, sem grande participação ativa, servindo vez ou outra para que os personagens possam mostrar seus conhecimentos. Os personagens são simples: Introduz-se o romance contando a vida do Dr. Lopes Matoso, bem sucedido, órfão aos 18 anos, pouco tempo após casar-se perde a esposa, morta de parto. Viúvo, pai de uma menina – Lenita – decide mudar-se para uma chácara, isolando-se da cidade e de boa parte dos amigos. Lenita cresceu cercada pelos cuidados do pai e por uma educação primorosa, superior à das meninas de sua época, conhecedora das ciências, das artes e de alguns idiomas, além de praticante de equitação e ginástica. Ao chegar ao período da juventude (o livro não se refere assim, mas subentende-se que se trata do período da adolescência), Dr. Lopes Matoso volta à cidade com Lenita e começam a surgir os pedidos de casamento, sempre recusados por uma Lenita segura de si.
Ainda no primeiro capítulo, dá-se outra reviravolta na história: Dr. Lopes Matoso morre, deixando Lenita órfã. O isolamento e a tristeza a levam a refugiar-se na fazenda do Coronel Barbosa, antigo tutor de seu pai, idoso, doente de reumatismo, casado com uma octogenária que mal se movimentava e era meio surda. Os primeiros tempos da moça na fazenda são relativamente isolados, ainda cercados pelo luto, chegando ela inclusive a cair doente. A partir da recuperação da personagem, o autor passa a descrever uma mudança radical de comportamento na moça: Ela deixa de comportar-se de maneira viril, passa a sentir necessidade de se “afeminar”, volta a tocar piano, lê romances mais melosos, desinteressando-se temporariamente das ciências às quais antes se dedicava com afinco. Nessas alturas, Lenita tem o primeiro delírio erótico.
Observe-se que o casal idoso que acolheu Lenita tem um filho: Manoel Barbosa, já quarentão, ausente durante tempos em função das caçadas, viajado, bem instruído em idiomas, artes e ciências, casado com uma francesa da qual se divorciara por não aguentarem-se morando juntos. Manoel Barbosa é tema recorrente nas conversas da casa e Lenita, em sua solidão e influenciada pelas “necessidades da carne” começa a idealizar nele o homem ideal: belo, gentil, instruído e espera ansiosamente por sua chegada. Imagina-o semelhante à estatueta de bronze, muito máscula e viril com a qual teve pela primeira vez devaneios eróticos. 
Novamente o autor modifica o comportamento da personagem: Vejamos, no início da narrativa, uma garotinha, órfã de mãe e excessivamente instruída (tal descrição nos é dada sem participação ativa de Lenita). A garotinha cresce e torna-se moça, em idade apropriada para o casamento, independente e forte o suficiente para recusar pretendentes, quase viril por seus interesses e atitudes. Após a morte do pai e o isolamento na fazendo do Coronel Barbosa, passa por uma fase em que toma hábitos mais femininos e experimenta pela primeira vez os desejos da carne, as necessidades do corpo que deveriam-na arrastar a um casamento. Novamente modifica-se o comportamento da personagem, que passa a comportar-se de maneira feminina (uso de perfumes, cuidados com os cabelos, roupas, etc.) e ao mesmo tempo viril (caminhadas e exercícios ao ar livre, caçadas, banhos de riacho).
A notícia da iminente chegada de Barbosa aflora ainda mais a imaginação de Lenita, que se veste e o espera o mais bela possível. Quando o conhece, uma grande decepção: Ele chega coberto de chuva e lama, recendendo a pinga, tomado por uma enxaqueca forte que o deixa quase indelicado. Segue-se uma narrativa do estado de espírito da moça – decepcionada com o homem que ela esperava ser “perfeito” e consigo mesma por ter-se deixado levar por estas fantasias, tão instruída que era. Novamente indisposta, enclausura-se em seu quarto (veremos no decorrer da narrativa que este parece um expediente comum: Tensão nervosa – doença/indisposição – refúgio no quarto) durante pelo menos dois dias.
Novamente Julio Ribeiro nos brinda com uma reviravolta na narrativa: Lenita e Manoel Barbosa (ou Barbosa, como será chamado na maior parte dos momentos) encontram-se no pomar, nascendo uma amizade intensa que os une em diversas atividades: estudos de botânica, ciências, línguas, literatura, passeios ao ar livre, experiências com eletricidade. Ela tem “certeza” de que o ama, ele mostra-se em certo ponto assustado pela consciência de que sem ela já não consegue mais viver. Uma viagem de urgência, a negócios o faz retirar-se para Santos, decidido a deixar morrer qualquer sentimento que tivesse por Lenita, já que não poderia desposá-la (ressalte-se aqui: O livro se passa na época em que ainda havia escravos no Brasil, portanto a noção de moral e costumes era diferente: Mesmo divorciado, o homem não poderia casar-se novamente e os relacionamentos entre não-casados eram condenados pela sociedade).
Quando retorna, Barbosa encontra Lenita caçando e esta atividade passa a ser diária. Lenita desdobra-se em cuidados com ele e ele com ela. Certo dia, ele prepara um abrigo e uma ceva na mata (ceva: um local onde é deixado alimento, para atrair os animais), para atrair mamíferos maiores para que Lenita possa caçar. Inicialmente corre tudo como o planejado, Lenita fica feliz, a caçada é um sucesso; dias depois, ela vai sozinha à ceva e acaba sendo picada por uma cascavel. Neste trecho do livro é interessante notar a noção de auto-socorro da moça, que imediatamente faz o que chamamos garrote na própria perna (fazer garrote consiste em amarrar fortemente um membro do corpo – no caso o membro onde se sofreu a picada do animal venenoso – de forma a dificultar a circulação do sangue para outras partes). Chamado pela escrava para socorrê-la, Barbosa suga parte do veneno e leva-a para casa, velando-a durante toda a noite e tratando-a de acordo com seus conhecimentos elementares de medicina. Lenita acredita que irá morrer, apesar dos cuidados de Barbosa e acaba por confessar-lhe que o ama.
Lenita sobrevive, mas operam-se mudanças em seu comportamento. Tal qual no início de sua estadia na fazenda, ela torna-se meditativa, lânguida, perde muito de sua vontade de estudar, não caça; Barbosa também modifica sutilmente seu comportamento. Ele deseja Lenita, está mesmo decidido a tomá-la por amante, porém não tem a coragem necessária para tal feito e é por iniciativa de Lenita que ocorre a primeira relação sexual do casal, que passa então a encontrar-se em segredo todas as noites. Um acidente na fazenda faz com que Barbosa precise viajar e, Lenita, ajeitando seu quarto acaba encontrando recordações de outras mulheres. Tal descoberta a deixa transtornada e, novamente diante de uma lógica inesperada ela percebe que seu humor tem tido alterações freqüentes, bem como que tem enjoado até mesmo com o cheiro de Barbosa e, contando em seu calendário o tempo de atraso de suas regras (regras = menstruação) concluí que está grávida. Diante de tal fato, muda-se para São Paulo. Barbosa, ao voltar para a fazenda descobre a partida de Lenita, sem, no entanto entender. Mostra-se triste e pensa em suicídio, mas mantém-se calmo e nada faz neste sentido. Tempos depois chega uma carta onde Lenita narra-lhe detalhadamente suas observações sobre a viagem e sobre São Paulo e explica-lhe que partiu por estar grávida e saber que seu filho precisaria de um pai que lhe pudesse dar um nome, que contatou um antigo pretendente de boa posição social que aceitou casar-se com ela e assumir a criança, que iria com ele para a Europa por um tempo e que quando a criança nascesse iria chamar-se Manoel ou Manoela. Neste ponto quebra-se pela primeira vez na narrativa toda a lógica dos personagens, a ponderação racional e científica. Barbosa sente-se usado, abandonado e sem forças para continuar e, utilizando-se das noções de química e medicina prepara uma injeção que o matará e suicida-se. O pensamento lógico retorna exatamente neste momento em que nada mais do que lágrimas e emoções são esperados: O veneno que Barbosa utilizou retira-lhe os movimentos e capacidade de se expressar, mas não a consciência e ele ouve o momento em que o pai entra em seu quarto e o vê sem movimentos e julgando-o morto grita “meu filho morreu”, vê o momento que sua mãe, como por milagre, pois a muito tempo não andava vai até ele e chora. Neste momento ele se dá conta do que fez, de que ainda possuía uma família, de que Lenita jamais o amara, que era uma mulher instruída, bela e que o havia utilizado apenas para saciar suas necessidades fisiológicas e que não valia a pena morrer pelo amor de uma mulher como ela, porém é demasiado tarde, pois embora possuísse o antídoto do veneno, não havia ali quem soubesse e pudesse aplicar e ele mesmo estava impossibilitado de comunicar-se com quem quer que seja para explicar como salva-lo. E este é o fim de Barbosa: Preso em sua própria consciência, sem movimentos, aguardando a morte chegar.

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